
Me apaixonei pelo meu terapeuta e agora?
Um dia me perguntaram: “Você tem algum material sobre pacientes que tem transtorno de personalidade e que se apaixonam pelo terapeuta?
Os transtornos de personalidade se caracterizam por um padrão mal adaptado, profundamente enraizado e inflexível com reações emocionais exacerbadas. Segundo o Manual Diagnostico e estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), um Transtorno de personalidade é definido como um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo.
Em geral existem 10 tipos de transtorno de personalidade: transtorno paranoide, transtorno esquizoide, transtorno esquizotípico, transtorno antissocial, transtorno boderline, transtorno narcisista, transtorno histriônico, transtorno obsessivo compulsivo, transtorno de personalidade esquiva ou evitativa, transtorno de personalidade dependente. (DSM-5 e CID-11)
Depois de refletir sobre a pergunta fiquei pensando que a vida é uma via de mão dupla e me perguntei sobre qual a forma que o terapeuta abordava seu cliente que fazia com que ele se apaixonasse por ele – terapeuta?
Imagino que isso pode ser uma reviravolta nas psicoterapias.
As terapias que usam o paradigma intrapsíquico e que trabalham com transferência propiciam esse fator pois são relações que causam esse ‘efeito colateral’. Sim se apaixonar por seu terapeuta é um efeito colateral dessa abordagem. Freud (1915) chamava “amor de transferência”. Não é uma questão ética como alguns tentam argumentar mas uma questão técnica. Muito diferente de admirar um profissional que o tratou e qualificar seu esforço e o dele na direção do seu bem estar.
Na terapia relacional sistêmica quando trabalhamos com o outro trabalhamos com a gente mesmo simultaneamente, pois os avanços do cliente são proporcionais a habilidade do terapeuta se diferenciar na sua própria família.
Todos nós estamos vinculados a um sistema familiar mesmo aqueles que vivem em orfanatos ou abandonados por seus pais. Nesses dois últimos casos essas pessoas estão vinculadas a sistemas substitutos que são suas referencias familiares. É nesse sistema que aprendemos a nos comportar e a repetir padrões de comportamentos construtivos e destrutivos de nossos pais e familiares. Porque estou falando isso? Porque um profissional que trabalha com pacientes com transtornos graves precisa ter essa referencia teórica e metodológica em mente para que não ocupe espaços que não lhe pertencem através de transferência.
Saber que você tem seu próprio pai, mãe e irmão conhecer os padrões funcionais e disfuncionais de sua própria família de origem, ter isso como meta de trabalho pessoal e conhecer a teoria sistêmica, como funcionar com essa metodologia e estuda-la corrige esse curso distorcido da paixão.
Se os profissionais se colocam a disposição do cliente e não acionam a família de origem da pessoa a armadilha será fatal. Incluir a família no tratamento implica em além de acionar as figuras corretas para o paciente se diferenciar, também, em orientar ao familiar a se comportar de forma diferente com o paciente referido. Nesse processo os padrões repetitivos de comportamento começam a ‘falhar’ no bom sentido. Como num caleidoscópio, se mudamos uma peça toda a figura muda. Novos comportamentos podem ser desenvolvidos.
Para os profissionais de terapia familiar sistêmica não existe um paciente com transtorno de personalidade mas sim um sistema familiar com transtorno de personalidade. Todos estão incluídos, todos estão envolvidos e tem a sua parcela de responsabilidade no favorecimento da doença. A confirmação dessa consigna aparece quando o paciente referido começa a melhorar e outro familiar mostra sintoma. Para um terapeuta familiar a definição de família saudável e funcional é aquela onde cada um pode “pirar” alternadamente. Ou seja a alternância da disfuncionalidade propicia um contexto mais ameno e compassivo. Isso torna o sistema mais aberto a mudanças. Doença mental é congelamento do sistema no tempo.
Mas o que tudo isso tem a ver com a paixão?
Nós somos técnicos que trabalhamos para a saúde mental de nossos clientes e não podemos ocupar o lugar do familiar. Pesquisar com o cliente seus referenciais familiares e mostrar para ele que está repetindo ou escolhendo mudar é construir a responsabilidade, junto com ele, de seus atos. Enfraquecendo então a tendência a culpar os pais, o país, a economia, o mundo por suas escolhas.
Sei que parece um paradigma bem diferente mas ele é baseado em observação, experiência e estudo. Aprendi com Bowen, médico psiquiatra e terapeuta familiar e em minha formação com Moisés Groissman na Núcleo Pesquisas RJ, que o maior beneficiário da terapia sistêmica é aquele que a está aprendendo. Se o profissional se orienta na direção classificatória de seu cliente ele pouco poderá fazer na direção da saúde mental dele pois terá poucos subsídios, poucas ancoras. A família de origem é uma ancora e uma referencia. Se ele se orienta pelo sistema familiar ele poderá assim construir um projeto de trabalho na direção da funcionalidade dele como profissional e do cliente que procura.
Bowen entende os transtornos mentais numa escala de diferenciação onde 0 seriam aqueles menos diferenciados e 100 os mais diferenciados. Os pacientes psicóticos graves estariam na escala de 0-25, aqueles da escala de 25-50 seriam de alguma forma um pouco mais diferenciados mas ainda assim estariam no espectro psicótico, os de 50-75 já estariam na escala neurótica e portanto com maior possibilidade de se diferenciar de suas famílias. Ele afirma que os profissionais em geral estariam nessa faixa. Já os de 75-100 ele sinaliza que não conheceu pessoas assim. Estar na escala de 0-25 de diferenciação não significa que o paciente não possa estar equilibrado. Existem familiares que se contentam somente com a calmaria do sintoma.
Para mim como estudiosa e observadora do assunto acredito que essa escala não para em 100 pois a possibilidade de nos diferenciarmos é infinita e até o final de nossas vida. Se estamos trabalhando com os padrões repetitivos de comportamentos na direção da diferenciação, podemos cada vez mais sermos criativos e renovadores naquilo que fazemos e nas relações com os outros.
Nesse sentido a paixão é nocauteada pois entra em cena a admiração e o respeito pelo bom profissional, o bom técnico. Aquele que me ajudou a crescer, ter responsabilidade e caminhar na vida. Se o cliente está saudável ele certamente ira procurar novas relações. O amor vai encontrar o lugar correto para ser trocado. Nesse caso a admiração pode gerar um sentimento amoroso e sabemos muito bem que existem várias formas de amar.
Zeneide Jacob Mendes- Psicóloga,
Especialista e Formadora em
Terapia Familiar Sistêmica
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